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No mundo todo, estamos passando por um período que traz grandes mudanças, preocupações e desafios. Tanto os adultos como as crianças estão aprendendo a se adaptar à nova rotina e, ao mesmo tempo, tendo que lidar com diversos sentimentos.
Aqui no Blog Dentro da História sempre falamos sobre como a leitura em família é uma forma de estimular o desenvolvimento infantil, ajudando a criança a compreender a si mesma e o mundo à sua volta. Desta vez, conversamos com um convidado muito especial sobre o papel das histórias neste momento de crise.
Ilan Brenman é escritor, educador e contador de histórias. Já publicou mais de 80 livros infantis e infanto-juvenis no Brasil e no exterior, tendo recebido prêmios como o selo “Altamente Recomendável” pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e o prêmio White Ravens, da Alemanha. Agora, sem poder percorrer o Brasil e o mundo para falar sobre literatura e educação, Ilan vem trazendo diariamente esses debates para o público em seu perfil no Instagram, junto a outros grandes escritores, artistas e educadores.
Para ele, as histórias são como um espelho da própria natureza humana. Por isso, desde a infância, os livros têm o poder de colocar o leitor em contato com seus sentimentos mais profundos. Nesta entrevista exclusiva, Ilan falou sobre a importância da literatura para ajudar as crianças a lidarem com esse momento de crise.
Confira:
1 – Ilan, por favor nos conte sobre você. Como você chegou até o mundo da literatura infantil?
Sou psicólogo de formação pela PUC, e fiz mestrado e doutorado na Faculdade de Educação da USP. A minha relação com a literatura nasceu por acaso: no primeiro ano de faculdade eu trabalhava para pagar a mensalidade e fiz um estágio com crianças, na educação informal. No primeiro dia eu fui cuidar delas no recreio e não sabia bem o que fazer. Três meninas se aproximaram, e uma delas me pediu: “Conta uma história pra gente!”. Eu falei que não sabia, mas então ela disse algo que mudou a minha vida: “Se você não sabe, inventa.”. Pensei “Poxa, inventar eu sei!”. Então fui contando uma história e as crianças foram se aproximando para ouvir. E não parei mais, esse foi o ponto de virada na minha vida.
2 – Hoje você já tem mais de 80 livros publicados. De onde vêm as inspirações para as suas histórias?
A minha criação envolve três tipos de escrita, que podemos considerar gêneros literários. Tem as histórias de reconto, que são histórias antigas e tradicionais que eu reconto. Vários autores fizeram isso, como Monteiro Lobato e Ruth Rocha. Recontar histórias tradicionais da África, China, Rússia, Índia, demanda muita pesquisa. Também tenho livros de criação pura, que tradicionalmente é o que a maioria dos autores fazem: você tem uma ideia e vai desenvolvendo a história.
E a terceira forma de criar, que são minhas histórias mais famosas e mais universais também, tem a ver com as minhas filhas, que hoje já são adolescentes. São narrativas do cotidiano. Eu falo que sou um pescador do cotidiano: fico esperando e, quando alguma coisa acontece, eu puxo a vara, fisgo e aquilo vira material para ficção.
3 – Recentemente você publicou um texto no Instagram relacionando a função das histórias com a imunidade das crianças. O que isso quer dizer?
Falamos muito sobre o poder das histórias como algo mágico, e não é verdade. Temos muitas pesquisas pelo mundo mostrando a função das narrativas e os benefícios que elas trazem. Não é uma hipótese, nem algo romântico. O ato de ler em si, de escutar uma história, tem a parte mágica e de prazer, mas vai muito além disso. É como se alimentar: a gente se alimenta de algumas comidas que, além de serem uma delícia, fazem muito bem. As histórias também.
Fazendo outro paralelo: quando uma pessoa vai passar por uma grande cirurgia, do coração por exemplo, precisa ter psicólogos do lado. Porque se o paciente estiver bem para a cirurgia, ele tem mais sucesso pós-cirúrgico. Uma pessoa deprimida, com uma tristeza profunda, tem seu sistema imunológico abalado. Ou seja, nossa imunidade tem a ver com nosso equilíbrio emocional.
Partindo dessa premissa a gente pode fazer o salto para as histórias. As histórias afetam nosso emocional quase sempre de uma forma positiva. Tem a ver com nosso equilíbrio mental. Para as crianças pequenas, é como respirar. Se elas têm histórias na vida delas, elas fortalecem a mente e por consequência também sua resistência. Essa é a relação da imunidade com o mundo das histórias.
4 – Então as histórias são uma forma simbólica de lidar com a realidade?
As histórias de qualidade contemplam a complexidade, nossos anseios, desejos, e dialogam com os sonhos e pesadelos, seja dos adultos ou das crianças. Esse tipo de história é um grande espelho da própria natureza humana: o que a criança é e o que ela pode vir a ser.
Esse espelho literário traz uma sensação de ordenamento para a criança, porque ela consegue ouvir na história aquilo que ela não compreende dentro dela. Por exemplo, os contos de fadas, os contos tradicionais, a boa literatura infantil, falam para a criança: “Amadurecer é difícil. Crescer é dolorido.”.
Os médicos falam sobre dor do crescimento. Crescer dói mesmo, mas não é só o osso, a mente também. A criança quer ser criança para sempre, mas também quer ser independente. Quer ficar com o papai e a mamãe, mas também quer ficar longe. Esse conflito é interno, natural do amadurecer.
E as histórias falam justamente disso: essa dor vai existir, amadurecer é sofrido, mas você vai conseguir. E como você vai conseguir? As histórias dizem que vão ter pessoas ao seu redor para te ajudar. Vão haver obstáculos, mas você vai superá-los e vai alcançar o próximo nível. Mas isso não vai acabar. Sempre vem o “conta de novo”.
5 – Estamos vivendo um momento de crise que afeta tanto os adultos como as crianças. Qual a importância das histórias para lidar com as dificuldades da vida?
As histórias, nesse momento, são mais do que fundamentais. Estamos vivendo um momento de crise em potência mil. A própria vida já é difícil, uma vida em isolamento em quarentena é mais ainda. A criança sente angústia e não consegue expressar, então a literatura vai dar voz a essa angústia e falar: “Sossega aí, vai ser difícil, tem bruxa no caminho, mas a gente vai conseguir.”.
Em todos os momentos de crise, as histórias e a arte tiveram função fundamental. Quando a peste negra assolou Florença no Século 14, Giovanni Boccaccio escreveu Decameron, que relata o isolamento de 10 jovens em um castelo, e para passar o tempo eles contavam histórias. Como uma ferramenta não só de distração, mas de ancoragem emocional e fortalecimento.
Histórias são uma forma de resistir, não tem nada mais resiliente no mundo do que uma história que passa por anos e anos e continua sendo contada. Essa qualidade passa para a criança, para a gente.
6 – Então, o que caracteriza a boa literatura infantil?
Por oposição, o que não é uma boa literatura infantil são as histórias que não mexem com esses elementos simbólicos da vida infantil. Uma história que não entende que a criança tem medo da morte, da separação dos pais, da hora de dormir. Uma literatura que não contempla o desejo da criança de ser grande, de ser adulto. Que não contempla o ciúme, a coragem, a complexidade.
A boa literatura infantil é aquela que dialoga verdadeiramente com a criança, não subestimando a sua inteligência. Sabendo da sua complexidade, sabendo que a infância tem uma riqueza de emoções enorme. A criança não é um ser bom por natureza: ela não é nem boa nem má, todo ser humano é assim. Você achar que a criança é uma florzinha e que nada de mal existe lá dentro, é desconhecer a natureza humana e não oferecer para a criança o que ela precisa: um espelho para falar desse lado ruim e transformar ele, que é o que a literatura faz.
7 – Este momento também é uma oportunidade de estreitar os vínculos familiares. Como a leitura pode ajudar nisso?
Eu sempre falo que nossos filhos não vão lembrar do 15º celular que a gente deu, porque eles vão ter isso de monte. Daqui anos eles vão lembrar dos pais lendo para eles, passeando no parque, brincando na praia, são esses momentos que ficam. E as histórias aparecem muito na nossa memória. Ou seja, as histórias vinculam a gente com o outro. Não tem coisa mais linda que contar uma história, compartilhar um livro. É uma marca muito forte.
O que posso dizer é que, se você puder ler um livro durante a quarentena, os benefícios são enormes para a criança, além do vínculo que vocês estabelecem, as memórias que você vai deixar desse momento e as ferramentas psicológicas que a história vai dar para as crianças. Não pode ser mais um peso nesse momento estressante. A realidade é que tudo está um caos, e as histórias ajudam a organizar o caos. Se você conseguir colocar isso na sua rotina, bons frutos virão.
Dica para as famílias!
Cadastre-se para receber atividades que ensinam as crianças a reconhecer os sentimentos e lidar melhor com eles. A família toda vai se envolver com o Jogo dos Sentimentos e o Calendário das Emoções!